terça-feira, 1 de março de 2011

"A Anita no País dos Mentirosos" in Blogue Folha de Sala

Gabriel Garcia - Palcos de sonho e pesadelo


AFátima, e serve leitões ao fim-de-semana. Se não acredita, comprove-o na exposição “Anita no País dos Mentirosos”, de Gabriel Garcia. Tudo começou na montra de um alfarrabista onde uma capa de um dos livros da Anita chamou a atenção do artista. Partindo desta imagem, faltava o contexto para começar a trabalhar. E não há melhor contexto do que o País dos Mentirosos, afinal de contas, o país onde todos nós vivemos, começando pela classe política, mas não só. Como explica Gabriel Garcia: “a fantasiar acabamos por ser mentirosos. A mentira permite voar por cima das nuvens e viajar ao encontro da fantasia e é isso o que eu tenho vindo a desenvolver nos meus trabalhos.”

A história original, a do país das maravilhas, traz consigo o jogo entre uma terra de fantasia e local de gente má. Como as mentiras, que podem ser boas ou más. Há sempre um ambiente teatral, burlesco e circense nestas imagens. Gabriel Garcia inventa personagens grotescas que pinta e depois liberta, engarrafando-as literalmente em pequenos frasquinhos que são depois pendurados no tecto da galeria.

Gabriel não planeia meticulosamente cada imagem que cria, preferindo pintar ou desenhar como se fosse uma escrita automática. Nesse método, evoca André Breton, o papa do surrealismo, como influência teórica no seu trabalho. Mas os territórios perigosos do surrealismo são difíceis de percorrer sem consequências. Aliás, mesmo Breton disse uma vez que os campos de prospecção do inconsciente, como a escrita automática e o sono hipnótico, “são muito difíceis de circunscrever. Assim que se tenta fixar-lhe os limites, impõe-se uma grande margem de flutuação, de incerteza. São terrenos movediços, sobre os quais nunca há a certeza de se ter pé.” (Entrevistas, Ed. Salamandra) Assim, apesar de utilizar as ferramentas inexactas propostas por Breton, Gabriel esclarece: “eu não sou surrealista. Quando falo de surrealismo, não o faço no sentido dos ideais e da concepção de vida que os surrealistas defendem. A questão do surrealismo vem do lado onírico, automático e inconsciente que utilizo no meu trabalho. Às vezes usar mais palavras para explicar as minhas obras não vale a pena. É nas entrelinhas que se contam as histórias.” E é nas entrelinhas que começa a operar a imaginação de cada observador que se plante em frente a uma destas pinturas.

Nos tresloucados sonhos pintados desta exposição, há uma permanente alusão aos contos infantis, mas aqui o pintor restitui--lhes a ironia e crueldade originais, o que permite uma identificação com o mundo adulto, mas com conteúdo retirado com uma pinça directamente ao inconsciente de origens recônditas e infantis. São a fantasia das crianças e a mentira dos adultos que se cruzam e confundem. Tudo isto é enquadrado por um cenário teatral, como as paisagens em cores berrantes que fazem lembrar os cicloramas das peças de teatro. A disposição das personagens é também estudada dentro da composição de cada quadro como num palco. Um lado grotesco na fisicalidade de cada personagem é o toque adicional para transformar tudo isto num espectáculo circense.

As obras de Gabriel Garcia assumem as influências das criaturas de Bosch, dos ambientes, cores e cenários de Brueghel, assim como das máscaras de James Ensor. Quando se desloca para o desenho, lembra Mário Botas. Mas essas influências não fazem da pintura de Gabriel Garcia uma colagem ou pastiche. São sinais no caminho que vai levar a paragens muito diferentes. Talvez sejam mentira, mas são certamente o outro lado da fantasia.

“Anita no País dos Mentirosos” está patente