terça-feira, 1 de março de 2011

Quadros de Encantamentos



Lembro-me de um pesadelo recorrente de já lá vão sessenta anos. Espreitava-me numa esquina um adulto – um palhacito - a sorrir-me; à medida que se aproximava, o sorriso transformava-se num esgar hediondo. Acordava apavorada, sem palavras que me valessem para atenuar o medo, dando-lhe um nome. Não sabia então que estava a viver um sonho de encantamento. Foi já depois de meia vida vivida que me voltei para o mundo dos contos “de encantamento” da tradição portuguesa (e de meio mundo), em procura de nomes e respostas – e foi lá que me dei conta que nomes e respostas são sempre transitórios, sempre deferidos. E que as histórias, essas, vão ficando nas suas permutações constantes – sugerindo, consolando, segredam rondando os sonhos, mergulham-nos neles e trazem-nos à tona, inseguros, inquietos, pedindo mais. “Encantados”, entramos na floresta, visitadas por bruxas de voz doce que nos envenenam numa casa de anõezinhos, ou somos albergados por outra bruxa que nos engorda para nos comer – um espaço de segredos para desvendar, de medos, de poder, de magia para confrontar e desfazer. Acompanhamos os príncipes e princesas encantados, ele porque é um lagarto que devora cada noiva que lhe resiste, ela porque gasta de noite uns sapatos de ferro quando magicamente se escapa para ir dançar com o diabo no lago duma floresta de folhas de cobre, de prata e de ouro. Por fim, des-encantada, a princesa perde o poder e o feitiço, o herói pode casar com ela e passar a ser um príncipe num reino livre de encantamentos… des-encantado. E a história acaba, uma história que nunca nos satisfaz, pedimos outra – com mais medo e encantamento - para podermos (“nós”, crianças) chegar ao fundo do que afinal isso é – “isso” sem nome cujo sorriso é um esgar e que não se consegue olhar de frente. E que a sabedoria de uma longa tradição vestiu de histórias, de metáforas, de … nomes. Fê-lo tão bem que nos convenceu de que desencantamento é fim de festa e encantamento é que é bom – as palavras vingam-se.
Gabriel Garcia entende o que é encantamento – e mostra-nos. Encantamento é estar literalmente tramado, enredado, embruxado; é estar alienado, perdido, neurótico, aflito mesmo que o não saiba. O pintor transporta consigo os lugares e os bonecos da infância, e cogita entre destroços desse jardim encantado e sem saída. Pinta histórias sem fim feliz, em que o desencantamento (como os adultos o entendem) atravessa todo os lugares de encantamento. E o pintor é como os meninos indigo, sonha a cores e com as cores do encantamento (que enredados que nós estamos em palavras, valham-nos agora as cores). Mi-nu-ci-o-sa-men-te, desenha e pinta. E crescem histórias das histórias – daquelas outras que já vimos (ouvimos?) no Jardim das Delícias, nos “bonecos” da Paula Rego, no País da Maravilhas, no Pinóquio, no Hamlet sentado sobre a morte sem ter sequer deixado as calças de menino, – crescem, desdobram-se, até o quadro estar acabado. Quadro acabado, quarto ocupado, aferrolhado. Espreitamos – como na lanterna mágica, sem vergonha que nos esconda, a nu. E olhamos, vamos lendo, ouvindo a ver. Sem cantinhos de ternura nem colo da mãe que nos embale. Olhamos esse quarto dos brinquedos, terra gasta sem rei pescador. Em vez dele, um Pinóquio pançudo de barquinho na mão – e um pequenino mar azul (das descobertas?) com peixe de Bosch… O tronco mexe, é um dinossauro, o boneco anãozinho olha e tapa os ouvidos, sobram-lhe outros braços para os ter caídos. Oh Portugal, feira cabisbaixa, questão que eu tenho comigo mesmo...
Um olho espetado num garfo, a dona da banca a mastigar o outro … enquanto ali está, a prender os nossos olhos. Uma pirata de braço de pau (braço de boneca?), gulosa colona caçadora de cabeças. E o tal sonso Pinóquio, amarrado e mirrado, destinado a ser pitéu entre ratos e vermes e, sim, a tal caveira (assento do Hamlet noutro lado), agora o pote da abundância. Todos eles com um nome. Já não estamos a brincar, estamos a ver, a paisagem de desolação encantada é afinal também um quadro – janela sem saída, trapo paisagem. Saímos dali, habitar outro quadro, ouvir mais, mas havemos de voltar, não vimos tudo. Saímos da galeria, sorrimos, suspiramos, entendemos.
Encantos, o pintor os colheu neste jardim à beira-mar plantado, o pintor os secou, pintou, O pintor os estirou nos cordões da tarde. Estão presos, visitáveis, prendem-nos mas já não nos metem medo, estão prontos para ser contados – ou desencantados? Acabei, finalmente por entender o que é o encantamento. Obrigada, Gabriel Garcia.

Isabel Cardigos

Centro de Estudos Ataíde de Oliveira, Universidade do Algarve

12 de Abril de 2010